Minhas Férias, Pula uma Linha, Parágrafo
Um
O primeiro dia de aula é o dia que eu mais gosto em segundo lugar. O que
eu mais gosto em primeiro é o último, porque no dia seguinte chegam as férias.
Os dois são os melhores dias na escola porque a gente nem tem aula. No
primeiro dia não dá para ter aula porque o nosso corpo está na escola, mas a
nossa cabeça ainda está de férias. E no último, também não dá para ter aula
porque o nosso corpo está na escola, mas a nossa cabeça já está nas férias.
Era o primeiro dia e era para ser a aula de português mas não era porque
todo mundo estava contando das férias. E como todo mundo queria contar mais do
que ouvir, o barulho na classe estava mesmo ensurdecedor. O que explica o fato
de ninguém ter escutado a professora gritando para a gente parar de gritar.
Todo mundo estava bem surdo mesmo. Mas quando ela bateu com os livros em cima
da mesa a nossa surdez passou e todo mundo olhou para ela.
Ela estava em pé, na frente do quadro-negro e ficou em silêncio, com uma
cara bem brava, olhando para a gente.
Quando um professor está em silêncio com uma cara bem brava olhando para
você, é melhor também ficar em silêncio com uma cara de sem graça olhando para
um ponto qualquer que não seja a cara brava do professor.
A professora puxou a cadeira dela e se sentou.
Atrás dela, no quadro-negro, eu vi decretado o fim das nossas férias e o
fim do nosso primeiro dia de aula sem aula. Estava escrito:
Redação: escrever trinta linhas sobre as férias.
Eu sabia que as férias de ninguém iam ser mais as mesmas na hora que
virassem redação. É simples: férias é legal, redação é chato. Quando a gente
transforma as nossas férias numa redação, elas não são mais as nossas férias,
são a nossa redação. Perdem toda a graça.
Todo mundo tirou o caderno de dentro da mochila. Menos eu.
Eu fiquei olhando para aquela frase no quadro enquanto os zíperes e
velcros das mochilas eram os únicos barulhos na sala. De repente as nossas
férias ficaram silenciosas. Onde já se viu férias sem barulho?
Além do mais, eu tenho certeza de que a professora nem quer saber de
verdade como foram as nossas férias. Ela quer só saber como é a nossa letra e
se a gente tem jeito para escrever redação. Aqueles dois meses inteirinhos de
despreocupações estavam prestes a virar trinta linhas de preocupações com
acentos, vírgulas, parágrafos e ainda por cima com a letra ilegível depois de
tanto tempo sem treino.
A turma inteira já estava escrevendo quando eu percebi que a professora
estava só olhando para mim.
Quando um professor fica parado só olhando para você é porque você tinha
estar fazendo outra coisa que não era o que você estava fazendo.
A outra coisa que eu tinha que estar fazendo era minha redação. Então eu
puxei a minha mochila e peguei o caderno. É claro que minha mochila tem o fecho
de velcro e que todo mundo olhou para mim quando eu abri. Só a professora que
não olhou de novo porque ela já estava olhando antes mesmo.
Peguei a caneta. Eu nem sabia mais segurar direito a caneta. Escrevi:
Minhas Férias
Mas a letra ficou péssima e eu resolvi arrancar a folha para começar bem
o meu caderno. E todo mundo olhou de novo para mim, até a professora que já
tinha parado de me olhar.
Troquei a caneta por um lápis, porque se a letra ficasse horrível era só
apagar em vez de ter que arrancar outra folha.
Coloquei as minhas férias lá no alto e bem no meio da página. Pulei uma
linha. Parágrafo.
Minhas férias
Outro problema de transformar as nossas férias em redação é fazer os
dois meses caberem nas tais trinta linhas. Porque se a gente fosse contar mesmo
tudo o que aconteceu, as trinta linhas iam servir só para um dia de férias e
olhe lá.
E aí você olha para o seu relógio e descobre que as trinta linhas, que
pareciam poucas para contar todas as suas férias, viram muitas porque você só
tem mais 15 minutos de aula para fazer a redação.
Começar as férias é a coisa mais fácil do mundo. Em compensação, começar
redação sobre as férias é tão difícil quanto começar as aulas.
Fiquei me lembrando como é que eu tinha começado as minhas férias de
verdade. Assim eu podia começar a redação do mesmo jeito. Mas eu comecei as
minhas férias de verdade arrumando a mala para ir para a casa do meu avô. E
agora só faltavam 12 minutos para terminar a aula. Em 12 minutos eu não ia
conseguir arrumar a mala. Pelo menos não do jeito que a minha mãe gosta que eu
arrume. Então decidi começar as férias de minha redação direto da casa do meu
avô.
Minhas férias
Eu sempre adoro as minhas férias na casa do meu
avô. Principalmente porque não tem aula.
Não. Talvez seja um começo de redação muito pesado para o começo das
aulas.
Minhas férias
Eu sempre adoro as minhas férias na casa do meu
avô.
Lá tem um campinho de futebol bem legal e uma turma
de amigos bem grande.
Isso é perfeito porque um campinho sem uma turma
grande não serve para nada. E uma turma grande sem campinho não cabe em lugar
nenhum que não seja um campinho. A gente passa o dia todo jogando futebol e só
para de jogar quando já está escuro e não dá mais para ver a bola. Então já é
hora de jantar.
Depois do jantar, os meus melhores amigos da turma
vão para a casa do meu avô e a gente pode continuar jogando, só que futebol de
botão que não dá indigestão. Aí, a gente pode jogar até tarde porque no dia
seguinte não tem aula. É por isso que férias é bom.
Achei que desse jeito a minha
observação a respeito das aulas ficava mais sutil. Continuei.
Teve um dia que eu fiz um golaço. Não no futebol de
botão, no de verdade.
O gol veio de um pase de craque do Paulinho que é o
meu melhor amigo entre os meus melhores amigos da turma. Você sabe que para
jogar futebol não adianta só ser bom de bola. Tem que ter tatica.
O Paulinho driblou um, dois e eu vi que ele ia
passar pelo terceiro. Ele também me viu. Aí eu me enfiei pela esquerad e recebi
a bola. Chutei direto. Eu fiz um golaço tão grande que furou a rede e
estilhaçou em mil pedaços a janela do vizinho.
Deu a maior confusão porque enquanto a turma pulava
o vizinho apareceu bravo com abola em baixo do braço e a mulher dele veio
atrás. Eu tive até que parar com a minha comemorassão. Mas a mulher do vizinho
que veio atrás dele falou para ele que criança é assim mesmo e que a gente estava
só se divertindo e que ninguém fez aquilo de propósito. E era verdade mesmo
porque a culpa nossa da rede ter furado. E aí acabou ficando tudo bem. O meu
vizinho devolveu a bola, verificou a rede e disse que o meu gol foi mesmo um
golaço mas que era para a gente tomar mais cuidado com as janelas da casa do
lado.
O sinal tocou bem nessa hora. Eu nem contei quantas linhas eu tinha
escrito porque não ia dar tempo de mudar nada mesmo.
Arranquei a folha e dei as minhas férias para a professora.
Depois da aula de português vinha aula dupla de educação física. A maior
sorte que se pode ter num primeiro dia de aula é ter aula dupla de educação
física. Dá até para ficar contente de ter voltado para a escola. E dá até para
acreditar quando a nossa mãe fala que essa é a melhor época de nossa vida,
quando ela faz aquele discurso que toda mãe faz.
Discurso:
“Aproveita, meu filho. Essa é a melhor época da sua vida. Ir para a
escola é uma delícia. Quando você crescer vai se lembrar da escola e sentir uma
saudade danada.”
Minha mãe diz que é para aproveitar a escola porque depois que a gente
cresce a gente fica cheio de problemas para resolver. Aí é que está. Eu ainda
nem cresci e já estou cheio de problemas. Só no ano passado eu tive quer
resolver 187. E não foi nem para mim. Foi para o professor de matemática.
A semana passou bem rápido e quando a gente viu já era sexta-feira. Ter
chegado a sexta-feira era ótimo. Agora só faltavam mais dezenove semanas para
as próximas férias. A única coisa ruim é que na sexta eu tinha aula dupla de
português e a professora ia trazer as nossas redações de volta.
Quando a professora entrou na sala eu tinha acabado de puxar o elástico
do sutiã da Mariana Guedes. Agora a moda das meninas era usar sutiã por baixo
da camiseta. E a nossa moda era puxar o elástico para o sutiã estalar bem nas
costas delas. Eu corri e a Mariana Guedes me jogou uma borracha bem na cara.
Mas a professora foi olhar para a gente só na hora que eu joguei a borracha de
volta. E aquela Mariana Guedes ainda abaixou e a borracha passou bem perto dos
óculos da professora.
A professora ficou me olhando de novo, igual no dia da redação, e então
eu me sentei esperando uma daquelas broncas humilhantes no meio da classe. Mas
a professora não falou nada.
Quando você apronta uma dessas e o professor não fala nada, não é porque
o professor é um cara bem legal. É que o que vem pela frente é pior do que o
pior que você imaginava.
O pior foi colocado bem em cima da minha mesa. As minhas férias, que
tinham sido perfeitas para mim, não chegaram nem perto de terem sido boas para
a professora. Elas voltaram cheias de defeitos. Faltou um esse no passe de
craque do Paulinho, um acento na minha tática e a minha comemoração eu escrevi
com tanta empolgação que acabou saindo com dois esses em vez de cê-cedilha.
E o pior do que eu imaginava foi o que ela fez com o meu golaço que estilhaçou
em mil pedaços a janela do vizinho. Ela disse que “em mil pedaços” é um adjunto
adverbial e que tinha que ficar entre vírgulas.
Eu olhei na Gramática e lá estava explicado que um adjunto adverbial é
um termo acessório e a gente pode eliminar aquela parte da frase que ela
continua a fazer sentido. Eu queria ver a professora dizendo para o meu vizinho
que aqueles mil pedacinhos da janela dele eram só um adjunto adverbial.
E tem mais uma coisa: eu estava de férias. Era muito mais importante
marcar o gol do que as vírgulas, concorda?
E as minhas férias ficaram assim:
Minhas férias
Eu sempre adoro as minhas férias na casa do meu
avô.
Lá tem um campinho de futebol bem legal e uma turma
de amigos bem grande.
Por
que não substituir um bem por muito?
Isso é perfeito porque um campinho sem uma turma
grande não serve para nada. E uma turma grande sem campinho não cabe em lugar
nenhum que não seja um campinho. A gente passa o dia todo jogando futebol e só
para de jogar quando já está escuro e não dá mais para ver a bola. Então já é
hora de jantar.
não
se consegue mais ver a bola
Depois do jantar, os meus melhores amigos da turma
vão para a casa do meu avô e a gente pode continuar jogando, só que futebol de
botão que não dá indigestão. Aí, a gente pode jogar até tarde porque no dia
seguinte não tem aula. É por isso que férias é bom.
as
férias são boas.
Teve um dia que eu fiz um golaço. Não no futebol de
botão, no de verdade.
O gol veio de um passe de craque do Paulinho que é
o meu melhor amigo (entre
os meus melhores amigos) da turma. Você sabe que para jogar futebol não
adianta só ser bom de bola. Tem que ter tatica.
O Paulinho driblou um, dois e eu vi que ele ia
passar pelo terceiro. Ele também me viu. Aí eu me enfiei pela esquerda e recebi
a bola.
Chutei direto. Eu fiz um golaço tão grande que
furou a rede e estilhaçou, em mil pedaços, a janela do vizinho.
Adjunto adverbial
Deu a maior confusão porque enquanto a turma pulava
o vizinho apareceu bravo com abola em baixo do braço e a mulher dele veio
atrás. Eu tive até que parar com a minha comemorassção. Mas a mulher do vizinho
que veio atrás dele falou (para ele) que criança é assim mesmo e que a gente estava só
se divertindo e que ninguém fez aquilo de propósito. E era verdade mesmo porque
a culpa não foi nossa da rede ter furado. E aí acabou ficando tudo bem. O meu
vizinho devolveu a bola, verificou a rede e disse que o meu gol foi mesmo um
golaço, mas que era para a gente tomar mais cuidado com as janelas da casa do
lado.
Quanto e!
A professora não fez nenhum outro comentário sobre o que eu tinha
escrito. Para ela tanto fazia se o meu gol tinha sido um golaço ou um frango do
goleiro. Eu fiquei bem chateado. Ela tinha acabado com as minhas férias. Isso
significava que era a terceira vez que as minhas férias acabavam numa semana
só. Não podia existir nada pior do que isso na vida de um garoto de 11 anos.
Mas existia.
No final da aula a professora me chamou na mesa dela. Eu tinha que fazer
de lição para segunda-feira a análise sintática da frase: “Eu fiz um golaço
tão grande que até furou a rede e estilhaçou, em mil pedaços, a janela do
vizinho”.
Era o fim. As minhas férias já tinham virado redação e agora acabavam de
virar lição de casa. E uma lição dificílima. Fazer análise sintática! Eu nem
lembrava mais o que era isso.
Do jeito que as coisas vão, quando chegarem as minhas próximas férias eu
não vou saber se é para ficar feliz ou triste. Eu vou falar “ah, não, férias
me lembram redação e lição de casa” e ninguém vai entender nada.
Então eu pensei que ainda bem que amanhã era sábado. Eu já comecei a me
lembrar que a turma do prédio tinha marcado pólo aquático na piscina. Peguei a
minha mochila e saí correndo para não perder o ônibus para casa. Não me lembro
se a professora continuou em sala ou não. Eu só me lembro que eu fui o último a
sair.
O fim de semana me fez esquecer da escola e da primeira semana de aula,
o que foi bom. O único detalhe é foi que eu também acabei esquecendo da lição
de português. E na segunda de manhã eu tive que fazer tudo correndo quando
cheguei na escola, antes de tocar o sinal.
Análise sintática já é uma coisa bem complicada quando você tem que
fazer o exercício logo depois que a professora acabou de explicar como se faz.
Imagina fazer depois das férias de verão quando você mudou da quinta para a
sexta série mas nem se lembra como é que passou de ano.
Eu peguei o meu caderno e escrevi a minha frase.
Eu fiz um golaço tão grande que até furou a rede e estilhaçou, em mil
pedaços, a janela do vizinho.
Depois eu fui escrevendo o que eu me lembrava que tinha que ter numa
análise sintática.
Sujeito:
Predicado:
Objeto direto:
Objeto indireto:
Partícula apassivadora:
Isso era tudo o que eu me lembrava. Então eu comecei a escrever do lado
de cada coisa dessas uma análise sintática. Pus lá:
Sujeito: O meu vizinho. Que é realmente um sujeito de meter
medo apesar de eu achar que ele deve ser legal porque está casado há um tempão
com a mulher dele que é bem legal.
Predicado: O meu vizinho de novo. Isso, se a gente colocar no
meio dessa palavra a sílaba JU e então a palavra vira prejudicado porque ele
foi mesmo o grande prejudicado dessa história.
Objeto direto: A bola. Nem precisa explicar por quê.
Objeto indireto: Eu. Porque a janela quebrou em mil pedaços por
causa do meu chute mas na verdade foi culpa da rede que furou.
Partícula apassivadora: Essa era a mulher do meu vizinho que apassivou a
briga e se você reparar como ela é pequena eu acho que partícula é o que ela é.
Pronto. Acabei a lição e o sinal nem
tinha tocado ainda. Fechei o meu caderno. Depois eu abri de novo. Lembrei de
mais uma coisa que tinha na análise sintática e escrevi:
Adjunto adverbial: em mil pedaços.
No final da aula de português eu deixei a minha lição na mesa da
professora e fui para a minha aula dupla de educação física.
Na minha aula dupla de português da sexta-feira, a professora me
entregou a análise sintática. Eu tirei zero e tive que escrever toda essa
história contando tudo isso que aconteceu para você. Ela me disse que você é
que ia decidir o que fazer comigo, porque você é o Diretor dessa escola e ela
não sabia que atitude tomar. Foi isso.
Assinado
Guilherme Pontes Pereira
6a. série B – Manhã
No dia seguinte o Diretor me chamou na sala dele. Ele já tinha lido toda
a história que eu escrevi e eu já estava pensando no que eu ia dizer para os
meus pais quando ele me expulsasse da escola. Eu ia dizer:
- Mãe, pai, fui expulso da escola.
Eu entrei na sala do Diretor e me sentei na cadeira bem na frente dele.
Quer dizer, na frente mais ou menos, porque era uma daquelas cadeironas que a
gente afunda dentro, então o porta-lápis, que ficava na mesa do diretor, tapava
a cara dele até o nariz. Mas ele chegou o porta-lápis para o lado e eu consegui
olhar para ele bem de frente. E ele disse:
- Guilherme, eu fiquei muito impressionado com a história que você
escreveu. Você precisa fazer mais redações.
Então ele me mandou de volta para a sala de aula.